terça-feira, 1 de setembro de 2009

"AVE MARIA DE PEREIRA'


O Delegado intimou-me a depor sobre Joaquim Pereira, o Maestro da Banda de Agulhas Negras e da primeira Orquestra Sinfônica do Brasil, Aos costumes digo não ser parente do músico, em que pese o sobrenome, nem de tê-lo conhecido. Por ouvir dizer, sei que foi autor de três centenas de dobrados, oratórios, valsas, peças sinfônicas e populares - algumas gravadas em meia dúzia de Lps esgotados e esquecidos.
Não adianta mentir. Tenho que dizer a verdade ao Doutor Verdade que só assumi depois que li o depoimento do poeta João Cabral de Melo Neto: Não gosto de música, seja sacra ou profana. O doutor Delgado está sentado à minha frente, atento às minhas palavras. Na sua gaveta repousa um Colt 38. Minha mesa não tem gavetas, e uso o seu birô para guardar o traço cultural que me tipifica.Faz tempo que estamos juntos na mesma sala: um Delegado do extintos Territórios Federais e um Fiscal de Tributos Estaduais, prestando serviços como redatores no Palácio da Redenção - sede clássica do Governo da Paraíba.
Não tínhamos a embocadura para autos de inquéritos policiais e fiscais. Pedro Macedo Marinho deixou a fronteira de Rondônia com a Bolívia, e eu a divisa da Paraíba com Pernambuco, para sermos escribas áulicos. Nas hora válidas, Pedro escreveu esse livro em que narra a vida do sogro e o nascimento da mais antiga sinfônica do Brasil - A Orquestra Sinfônica da Paraíba.
O Autor e a Orquestra são como se fossem dois filhos de Joaquim Pereira. O Maestro prolífero teve onze filhos de dois casamentos - dois homens e nove mulheres, nas sua filha favorita, ainda mais que a caçula Ana, companheira de Pedro, foi a Sinfônica - renascida das cinzas da II Grande Guerra.
Como afirmei no começo desde depoimento, não gosto de música - apesar de ser paraibano. A música não me motiva a fazer o esforço de colocar um disco na vitrola, ou de deslocar-me até o local do espetáculo. Se estiver sozinho no restaurante, pelo para baixar o som sem querer ser rude e pedir que desliguem.Mas, se estiver na rua, ouço a Banda passar.
Gosto mesmo é de conversar com meus amigos músicos. Escuto a fala de Sivuca e de Vital Farias como eu escutava a voz de meu avô paterno Gratulino, tocador de fole de Misericórdia, no Sertão da Paraíba, e dono do timbre, do sotaque e do português mais bonitos que já ouvi - na linha de Luiz Jatobá, que saiu de Água Branca (antigo Distrito de Princesa Isabel, no meu Sertão) para definir a locução do Rádio Brasileiro.
Os músicos fiéis às raízes têm ouvido para captar musicalidade do povo - não só nas suas cantigas, mas também na sua fala. É por isso que elegi Sivuca e Vital como diapasões do meu sotaque. Correm o mundo e não se contaminam. Quando eles voltam do Rio de Janeiro, onde moram, e generosamente me convidam para um bate-papo, vou afinar meu sotaque ouvindo-lhes o diapasão exato e legítimo. Em toda a Paraíba, não há ortopéia mais autêntica.
Um dia Sivuca me disse que a cidade da Paraíba era a Viena do Brasil. Os grupos musicais da Paraíba são da melhor qualidade, do Quarteto de Cordas aos conjuntos que animam os bares - afirmou o Maestro, confirmado por Glorinha.
A Paraíba exportou para o Rio de Janeiro a mais famosa big band do Brasil: a Orquestra Tabajara, regida pelo Pernambucano Severino Araújo (a Tabajara cedeu o baterista Mário Lins para fazer o swing da banda de Tommy Dorsey, nos EUA): a Orquestra Paraibana de Frevos incendiou os carnavais do Nordeste e só parou quando o Maestro Amaury foi transferido para a banda dos Dragões da Independência, em Brasília: a banda da PM foi distinguida como uma das melhores bandas de músicas das polícias militares do País: o Coral Universitário foi escolhidos para representar o Brasil nos EUA (era a Ditadura, e o Regente do Coral, Maestro Arlindo Teixeira, de Minas Gerais, foi "barrado" por motivos ideológicos, o que desmotivou o grupo); reconhecido nacionalmente, o Madrigal Pedro Santos perpetua o trabalho do Maestro que emigrou da Amazônia para as caatingas a Orquestra de violões, com três dezenas de instrumentistas, só tem uma similar no País - a do Rio de Janeiro; a Orquestra Sinfônica é a única no Brasil (mas não é a primeira na Paraíba, como prova esse livro); e a Orquestra Sinfônica, filha favorita de Joaquim Pereira, já deu uma neta ao Maestro - a Sinfônica Jovem, que prepara talentos para a orquestra senior, e tem sido aplaudida no Brasil e no mundo. Quanto a Orquestra da Rádio Tabajara, que Chateaubriand levou para a Rádio Nacional, já tem substitua: a Orquestra Metalúrgica Filipéia. E o Coral de Crianças Surdas, regido pelo Maestro Lucena, emocionaria até João Cabral.
Muito antes disso tudo já havia os corais das lapinhas e dos pastoris, dos bois-de-reis e das naus catarinas. E as tribos de caboclinhos com suas bandas de pífanos, citadas nos livros didáticos do meu tempo como as mais autênticas do Brasil. Aquelas bandas, mais os conjuntos Cabaçsis do Sertão, inspiraram Ariano Suassuna a fundar, no Recife, a Orquestra Armorial- que veio terminar seus dias em Campina Grande.
Qual a província ou a metrópole que pode apresentar semelhante naipe de grupos musicais? Nem na Alemanha. Só se for na Áustria, como lembra Sivuca.
No Brasil, as províncias criaram sinfônicas antes das metrópoles. Depois da Paraíba, foi a vez de Campinas, São Paulo. Até que outro Maestro paraibano, José Siqueira (do Sertão de Conceição), fundou a Orquestra Sinfônica Brasileira, no Rio de Janeiro. Siqueira também foi um dos fundadores da Ordem dos Músicos do Brasil. Aos costumes direi que Siqueira morou na casa do meu avô materno, João Sitônio, em Princesa, quando o futuro Maestro da Sinfônica de Moscou tocava trompete na Orquestra Pereira Lima. Em Princesa toca-se tudo com todas as mãos; que o diga o violonista Canhoto.
A primeira orquestra em que Siqueira tocou foi fundada pelo meu tio o Coronel Zé Pereira, líder da Revolta de Princesa, só abafada com a Revolução de 1930. "Coronel José Pereira" foi o título de um dobrado de Joaquim Pereira (não eram parentes); mas depois de 11930, o Maestro, militar disciplinado e entusiasta dos liberais vitoriosos (aos quais Zé Pereira opôs armas), mudou o nome da peça, que passou a chamar-se "Paraíba" - sem que a amizade dos dois fosse sequer abalada.
Eu já estou usando a pauta suplementar neste testemunho sobre o Evangelho de Pedro, o meu objetivo não é apresentar o Autor, nem muito menos o imortal Maestro. Eu só quero destacar, do livro, o contexto musical em que Joaquim Pereira nasceu e viveu, e que tornou possível sua Obra - mais de 300 peças sacras, profana e marciais, muitas delas sinfônicas, como a própria Orquestra: depois da Guerra, o Maestro e um naipe de amigos resgataram a iniciativa pioneira do Clube Sinfônico, que no começo do século fundou na Paraíba a primeira sinfônica do Brasil. Não foi por vaidade, pois ele morreu humilde. Foi por necessidade: O Maestro precisava ouvir e tocar para crer.

Escrito por Otávio Sitônio Pinto

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